Os pratos estão empilhados de um dos lados da pia
numa torre irregular, equilibrando-se uns sobre os outros, como os
destroços de um prédio bombardeado ameaçando cair. Estão sujos. Muito
sujos. Foram deixados ali já faz algum tempo, e os pedaços de detritos
sobre eles se cristalizaram, tomando formas absurdas, surreais. Há grãos
e lascas, restos de folhas amontoados. Copos e tigelas, também
empilhados num desenho caótico, exibem a superfície maculada, cheia de
nódoas, e o metal das panelas, chamuscado e sujo, lembra a fuselagem de
um avião incendiado. Mas há mais do que isso. Há talheres por toda
parte, lâminas, cabos, extremidades pontiagudas que surgem por entre os
pratos, em sugestões inquietantes. E há ainda a cratera da pia, onde
outros tantos pratos e travessas, igualmente sujos, estão quase
submersos numa água escura, como se, num campo de batalha, a chuva
tivesse caído sobre as cinzas. O cenário é desolador.
A mulher se aproxima, os olhos fixos na pia. Suas
mãos movem-se em torno da cintura e caminham até as costas, levando as
tiras do avental. E a mulher abre a torneira. Encostada à pia, espera,
tocando a água de vez em quando com a ponta dos dedos. (...) A mulher
começa a lavar. Esfrega com vigor, começando pelas travessas que estavam
imersas, pegando em seguida os copos e, por fim, os pratos. Vai
acumulando-os, de um dos lados da pia, num trabalho longo, árduo. E só
depois se põe a enxaguá-los, deixando que a água escoe, levando consigo o
que resta dos detritos.
De repente, a mulher sorri. As pessoas não
acreditam, mas ela gosta de lavar louça. Sempre gostou. A sensação de
água nas mãos, seu jato carregando as impurezas, são para ela um
bálsamo. “É bom assistir a essa passagem, à transformação do sujo em
limpo”, ouviu dizer um dia um poeta. Ficara feliz ao ouvir aquilo. Só
então se dera conta do quanto havia de beleza e poesia nesses gestos tão
simples. Mas agora a mulher suspira. Queria poder também lavar os erros
do mundo, desfazer seus escombros, apagar-lhe as nódoas, envolver em
sabão todos os ódios e horrores, as misérias e mentiras. Porque, afinal,
do jeito que as coisas andam, é o próprio mundo que vai acabar – ele
inteiro – descendo pelo ralo.
(Heloísa Seixas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 de setembro de 2001).
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